Sobre
como o que se ouve pode espelhar a sociedade na qual se vive
Todos os
livros de Hermann Hesse parecem trazer-nos sempre uma lição iluminada, que se
destina a comportamentos tanto individuais como coletivos, sociais. Não para
menos, recordo a figura de um amigo que sempre reagia com espanto quando
soubera que alguém próximo ainda não o havia lido. Em “O jogo das contas de
vidro”, que se passa em uma realidade semelhante à nossa, propõe-se que destino
da humanidade viria a ser encaminhado, em tempos de crise, conforme dois
grandes centros: a música e a matemática. A primeira, por ser uma notável
expressão artística do povo; a segunda, por sua imutabilidade.
Oswald
Spengler costumava se referir à decadência como já oriunda de épocas distantes.
Se o tomarmos como certo, não se torna muito difícil perceber que, assim sendo,
estamos nos encaminhando para aquilo que Jaspers conceituou como
situação-limite.
Toda
exaltação que se faz a tal dita Democracia, esta expansiva forma de governo, é
apenas um meio de se camuflar a forma com que nos aproximamos de tal
situação-limite. É cobrir os lixões com tapetes belos. É levantar outdoors
entre as estradas que conduzem à Cidade Maravilhosa, de forma com que turistas
encantados não se notem suas favelas.
Foquemos
na música.
Confesso
que não tenho costume de acompanhar os programas televisivos aos domingos.
Primeiro, pela própria vontade, uma vez que acredito ter afazeres mais
importantes; segundo, por falta de opções. Mas foi em um desses domingos,
durante a visita a um familiar, que tomei contato com tal “sucesso do momento”.
A cena:
quatro jovens alcoolizados e sem camisa, postos ao lado de um carro. Deste,
ecoa uma canção em ritmo de forró: “Posso não, quero não... Posso sim, quero
sim”. E, no entanto, era apenas mais um dos tantos “fenômenos” considerados
hoje como “geniais”.
Por um
momento, pensei em tempos que não vivi, quando um Noel Guarani afirmava ser
poeta sem catecismo, criando sons de liberdade, dos cavalos às cheias do rio.
Pensei nos tempos em que o samba era mais melodia que percussão, quando
expressava as vivências de um boêmio. Pensei nos tempos em que a música de raiz
retratava a saudade de quem deixa o campo.
O
romantismo, o espírito de sacrifício, a revolução, as vidas de tempestades e
paixões, a sensibilidade, a vontade. Tudo isto repousa quase ao relento, em questão
musical na atualidade. Recordemos a um Wagner, músico completo, que,
composições à parte, fora escritor e responsável pelos desenhos de cenários e
figurinos de suas belíssimas óperas, e pensemos no contraste com a nossa época.
No
momento, o que rege nossa sociedade são os “Baby, baby, baby, uh!” de um
pequeno garoto, gemidos e sussurros das tantas cantoras de músicas
pornográficas, ou um “Pará pará pará...” de um funkeiro qualquer. São as Lady
Gaga com vestidos feitos de carne crua, Madonnas que embora próximas da
velhice, dão-se ao luxo de estar com rapazes de vinte anos, e Aguileras e todas
suas referências às corporações que dominam o mundo, e, por conseqüência, a
indústria da música.
Há não
muito, os cadáveres de Dresden foram retratados na Sapucaí. Neste ano, o
injustificável sacrifício de Abraão virou tema de escola. Também Bach foi
regido com batuques ao fundo. E tudo vira festa.
Do Balé,
que expressa o infinito concentrado no corpo humano, a beleza e a magia,
chegamos à promoção de danças de rua que se misturam a ritmos antifônicos,
sempre com um quê de malandragem e agressividade.
De língua
compreendida por todos os homens, conforme a definição de um grande filósofo
prussiano, a música futuramente haverá de se transformar (ou ser transformada)
em um alicerce de incontáveis problemas de educação e até segurança pública.
Noto
multidões de jovens que se deixam levar por instintos acionados conforte
batidas repulsivas e idiotizantes. A degradação pseudo-artística precede a
moral, física e espiritual. Verdadeiros exércitos joviais cujos idealismos e
rebeldias são administrados conforme tentáculos alienígenas: não se vêem a
lutar por povo, comunidade, região, nacionalidade ou origem étnica, conceitos
estes já ultrapassados – Altmodisch, em bom alemão - senão por seus ídolos da
música moderna.
Fato é
que tal como com a literatura, a música foi e tem sido propositadamente
distorcida. Um simples detalhe? Ou o sistema está consciente de que uma boa
mensagem musical pode trazer os indicativos para um despertar?
Penso por
um instante: e se ao invés de tocar o hino nacional brasileiro em ritmo de
samba, fossemos orientados a ouvir atentamente o que ele diz?
Penso
ainda: E se tivéssemos a sinceridade de um Beethoven entre nós, uma sinceridade
flamejante, capaz de, em um só golpe, transformar em cinzas os embustes ocos e
pseudo-artísticos da nossa era?
Somente
assim é que um Nietzsche voltaria a repetir sua sentença imortal: “Ohne Musik
wäre das Leben ein Irrtum” – “Sem a música, a vida teria sido um erro”.
Admita-se ou não, a arte sempre será o espelho do Khronos em que se vive. Com a
música, não poderia ser diferente.
A forma
com que esta expressão sublime vem sendo conduzida só nos leva a um caminho: à
decadência per se.
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