Por
Ananda Cooramaswamy
São bem
conhecidas as duas escolas contemporâneas de pensamento a respeito da arte. De
um lado, uma pequenina “elite” distingue as “belas” artes da arte como produto
de mãos habilidosas, valorizando-as muito como auto-revelação ou auto-expressão
do artista; esta elite, coerentemente, fundamenta seus ensinamentos de estética
no estilo, e faz da chamada “apreciação artística” uma questão de maneirismos e
não de investigação do conteúdo ou da verdadeira intenção da obra. Assim são
nossos professores de Estética e de História da Arte, que se regozijam com a
ininteligibilidade da arte ao mesmo tempo que a explicam psicologicamente,
substituindo o estudo do próprio homem pelo estudo da arte do homem; são nossos
líderes de cegos, alegremente seguidos pela maioria dos artistas modernos, que
são naturalmente lisonjeados pela importância atribuída ao gênio pessoal.
De outro
lado, temos a vasta multidão de homens comuns que não estão realmente
interessados em personalidades artísticas, e para quem a arte tal como definida
acima é antes uma peculiaridade que uma necessidade da vida, e que de fato não
têm nada o que fazer com a arte.
E acima
destas duas temos uma visão normal mas esquecida da arte, que afirma que arte é
fazer bem o que quer que precise ser feito ou produzido, seja uma estátua, um
automóvel, ou um jardim. No mundo ocidental, esta é especificamente a doutrina
Católica da arte; desta doutrina se segue uma conclusão natural, nas palavras
de São Tomás de Aquino: “Não pode haver bom uso sem arte”. É bastante óbvio que
se as coisas de que precisamos fazer uso – seja este uso intelectual ou físico;
ou, em condições normais, ambos simultaneamente – não forem produzidas da
maneira devida, elas não podem ser apreciadas, querendo dizer com “apreciadas”
algo mais do que simplesmente “gostadas”. A comida mal-feita, por exemplo, não
nos apetecerá; do mesmo modo, exposições sentimentais ou autobiográficas
enfraquecem o ânimo daqueles que as freqüentam. O patrono saudável está tão interessado
na personalidade do artista quanto na vida privada de seu alfaiate: tudo o que
ele precisa de ambos é que dominem suas artes.
Esta
seqüência de conferências sobre arte é dirigida ao segundo tipo de homem
definido acima, isto é, ao homem simples e prático que não tem utilidade para a
arte tal como explicada pelos psicólogos e praticada pela maior parte dos
artistas contemporâneos, especialmente pintores. O homem comum não tem o que
fazer com a arte a menos que ele saiba de que se trata, ou para que serve. E
até aí ele está inteiramente certo; se a obra não é sobre nada, nem serve para
nada, ela não tem nenhuma utilidade. Além disso, a menos que a obra trate de
algo que valha a pena – que valha mais a pena, por exemplo, do que a preciosa
personalidade do artista –, algo importante para o patrono e consumidor e
também para o artista e produtor, ela não tem utilidade real , não passando de
um artigo de luxo ou um mero ornamento. Nestas condições, a arte pode ser
considerada por um homem religioso uma reles vaidade, por um homem prático um
supérfluo caro, e pelo ideólogo de classe uma parte e parcela da grande
fantasia burguesa. Existem portanto dois pontos de vista opostos, um deles
dizendo que não pode haver bom uso sem arte, e o outro que a arte é um supérfluo.
Observemos, porém, que estas afirmações contrárias se referem a coisas bem
diferentes, que não são as mesmas só por terem sido chamadas de “arte”.
Adotemos agora a visão historicamente normal e ortodoxamente religiosa de que,
assim como a ética é “a maneira correta de fazer as coisas”, a arte é “fazer
bem o que quer que precise ser feito”, ou simplesmente “o modo correto de fazer
as coisas”; e referindo-nos ainda àqueles para quem as artes da personalidade
são supérfluas, perguntemo-nos se a arte é ou não uma necessidade.
Uma
necessidade é algo de que não podemos ficar sem, qualquer que seja o preço. Não
podemos entrar em questões de preço aqui, exceto para dizer que a arte não
precisa, ou não deveria ser cara, exceto na medida em que materiais custosos
sejam empregados. É neste momento que surge a questão crucial da fabricação
voltada para o uso versus a fabricação voltada para o lucro. É porque a idéia
de fabricação voltada para o lucro está ligada à sociologia industrial
correntemente aceita que as coisas em geral não são bem-feitas e portanto
também não são belas. É do interesse do fabricante produzir coisas de que
gostemos, ou que possamos ser induzidos a gostar, independentemente delas nos
servirem ou não; como os artistas modernos, o fabricante está expressando a si
mesmo, e servindo às nossas necessidades somente na medida em que isto é
necessário para que ele consiga vender alguma coisa. Os fabricantes e demais
artistas recorrem à propaganda; a arte é bastante propagandeada pelos “museus de
arte moderna” e marchands ; e artista e fabricante determinam o preço de suas
peças de acordo com o interesse do público. Nestas condições, como disse tão
bem Mr. Carey nesta mesma série de conferências, o fabricante trabalha para
poder continuar ganhando dinheiro; ele não ganha dinheiro para poder continuar
fabricando, o que seria o certo. É somente quando o artesão faz as coisas por
vocação, e não simplesmente porque faz parte do seu emprego, que o preço das
coisas se aproxima do seu valor real; e nestas circunstâncias, quando pagamos
por uma obra de arte projetada para servir a uma necessidade real, o dinheiro
que gastamos vale a pena; e sendo o propósito necessário, devemos ser capazes
de pagar pela arte, sob o risco de vi-vermos abaixo do nível humano normal; é
assim que vive hoje a maior parte dos homens, mesmo os ricos, se considerarmos
a qualidade e não a quantidade. Não é preciso dizer que o trabalhador também é
vítima da fabricação voltada para o lucro; tanto é assim que seria uma piada
dizer que as horas de trabalho deveriam ser, em princípio, mais agradáveis do
que as horas de lazer; que no trabalho ele deve fazer aquilo de que gosta, e
nas horas livres aquilo que deve – sendo o trabalho condicionado pela arte, e a
conduta pela ética.
A indústria
sem arte é brutalidade. A arte é especificamente humana. Nenhum dos povos
primitivos, do passado ou do presente, cuja cultura afetamos desprezar e nos
propomos a corrigir, dispensou a arte; da idade da pedra em diante, tudo o que
foi feito pelo homem, não interessando em que condições de dificuldade ou
pobreza, foi feito artisticamente para servir um propósito simultaneamente
utilitário e ideológico. Fomos nós, ao menos coletivamente falando, que
dominamos recursos amplamente suficientes, os quais não deixamos de
desperdiçar, que propusemos uma divisão da arte em um tipo não mais que
utilitário, e outro supérfluo, omitindo completamente aquilo que um dia se
considerou a mais elevada função da arte, a expressão e comunicação de idéias.
Há muito tempo atrás a escultura era considerada “o livro do pobre”. A palavra
“estética”, de “aesthesis”, “sentimento”, proclama nossa recusa dos valores
intelectuais da arte.
É preciso
falar de dois outros assuntos no tempo disponível. Em primeiro lugar, se
dissemos que o homem comum está certo ao querer saber de que trata uma obra, e
em exigir inteligibilidade das obras de arte, por outro lado ele está errado ao
exigir similitude e completamente errado ao julgar obras de arte antiga a
partir do ponto de vista pressuposto em expressões comuns como “isto foi antes
de conhecerem anatomia” ou “isto foi antes de descobrirem a perspectiva”. A
arte está interessada na natureza das coisas, e só incidentalmente, se é que
chega a tanto, na sua aparência, pela qual a natureza é mais obscurecida do que
revelada. O artista não pode se afeiçoar à natureza enquanto efeito, mas deve
dar conta da natureza enquanto causa de efeitos. A arte, em outras palavras,
está muito mais relacionada à álgebra do que à aritmética, e da mesma maneira que
certas qualificações são necessárias para a apreciação de uma fórmula
matemática, também o espectador precisa ser educado para entender e apreciar as
formas de arte comunicativa. Este é sobretudo o caso do espectador dedicado a
compreender e apreciar obras de arte que estão escritas, por assim dizer, em
uma língua estrangeira ou esquecida, como está a maioria dos objetos em
exibição nos museus.
Este
problema surge porque o trabalho do museu não é exibir obras contemporâneas. A
ambição do artista moderno de estar representado no museu é vaidade, e mostra
uma total incompreensão da função da arte; pois se uma obra foi feita para dar
conta de uma necessidade específica, só pode ser eficaz no ambiente para o qual
foi projetada, isto é, algum contexto vital como a casa de alguém, ou uma rua,
ou uma igreja, e não em um lugar cuja função primária é conter qualquer tipo de
arte.
A função
de um museu de arte é preservar e dar acesso a obras antigas que sejam
consideradas, por especialistas responsáveis por sua seleção, excelentes
exemplares. Podem estas obras, que não foram feitas para atender suas
necessidades particulares, ser de algum uso para o homem comum? Provavelmente
não à primeira vista e sem instruções, não até que ele saiba de que tratavam e
para que serviam. Poderíamos desejar, ainda que em vão, que o homem nas ruas
tivesse acesso aos mercados em que os objetos no museu foram originalmente
comprados e vendidos, no curso cotidiano da vida. Por outro lado, os objetos do
museu foram feitos para atender necessidades humanas específicas, ainda que não
precisamente nossas necessidades atuais; e é maximamente desejável que se
perceba que houve necessidades humanas diferentes, e talvez mais
significativas, do que as nossas. Os objetos do museu não podem de fato ser
concebidos como figuras a ser imitadas, só porque não foram feitas para
adequar-se a nossas necessidades particulares; mas na medida em que sejam bons
espécimes, o que se pressupõe pela seleção dos especialistas, pode-se deduzir
deles, quando comparados com seu uso original, os princípios gerais da arte, de
acordo com os quais as coisas podem ser bem-feitas para atender qualquer
finalidade. E este é, de modo geral, o valor maior dos nossos museus.
Alguns
responderam à questão “Para que serve a arte?” dizendo que a arte é um fim em
si mesmo; e é um tanto esquisito que aqueles que afirmam que a arte não tem
utilidade humana ao mesmo tempo enfatizem tanto seu valor. Tentaremos analisar
os erros aí contidos.
Falamos
acima do ideólogo de classe que não tem utilidade para a arte, e está diposto a
dispensá-la, considerando-a parte e parcela da grande fantasia burguesa. Se
pudéssemos encontrar um pensador destes, ficaríamos verdadeiramente felizes por
concordar que toda a doutrina da arte pela arte, e toda a preocupação de
“colecionar”, bem como “o amor da arte”, não passam de aberrações sentimentais
e formas de escapar das preocupações sérias da vida. Concordaríamos prontamente
que meramente cultivar as coisas mais elevadas da vida – a arte sendo uma delas
– em horas de lazer a serem obtidas por uma substituição ainda maior de meios
manuais de produção por meios mecânicos é tão vã quanto seria a prática da
religião pela religião aos domingos; e que as pretensões do artista moderno são
fundamentalmente imaginárias e egoístas.
Infelizmente,
quando vamos aos fatos, percebemos que o reformador social não é realmente
superior à atual ilusão cultural, estando apenas revoltado com uma situação
econômica que o priva das coisas elevadas da vida, que os ricos podem comprar
com mais facilidade. O trabalhador inveja, muito mais do que compreende, o
colecionador e “amante da arte”. A noção de arte do escravo assalariado não é
mais realista ou prática do que a de um milionário, assim como sua noção de
virtude não é mais prática ou realista do que a de um pregador da bondade como
fim em si mesma. Ele não percebe que, se precisamos de arte somente porque
gostamos de arte, precisamos ser bons somente se gostamos de ser bons; a arte e
a estética seriam meros problemas de gosto, e nada se poderia objetar à
alegação de que não temos o que fazer com a arte porque não gostamos dela, ou
que não temos nenhuma razão para sermos bons, caso prefiramos ser maus. O
assunto da arte pela arte foi levantado outro dia por um editor de The Nation ,
que citou com aprovação um pronunciamento de Paul Valéry a respeito de como a
característica mais essencial da arte é sua inutilidade , e continuou dizendo
que “Ninguém se choca ao ouvir que ‘a virtude é sua própria recompensa’… que é
apenas outra maneira de dizer que a virtude, como a arte, é um fim em si mesmo,
um bem final”. O escritor ainda disse que “inutilidade e ausência de valor não
são as mesmas coisas”; com o que, evidentemente, quis dizer “não são a mesma
coisa”. Disse ainda que só há três motivações pelas quais um artista é impelido
a trabalhar, isto é, “por dinheiro, fama, ou ‘arte’ ”.
Não
precisamos continuar a procurar por um exemplo perfeito de ideólogo de classe
estupidificado por aquilo que denominamos grande fantasia burguesa. Para
come-çar, está muito longe da verdade que ninguém se choque com a afirmação de
que “a Vir-tude é sua própria recompensa”. Se isto fosse verdade, então a
virtude não seria mais do que a atitude do moralista que vive de observar as
faltas alheias. Dizer que “a Virtude é sua própria recompensa” vai diretamente
contra todo ensinamento ortodoxo, em que se afirma de maneira constante e
explícita que a virtude é um meio para um fim, e não um fim em si mesma; um
meio para o fim último de felicidade humana, e não uma parte daquele fim [1]. E
exatamente do mesmo modo em todas as civilizações normais e humanas a doutrina
a respeito da arte sempre afirmou que a arte é igualmente um meio, e não um
fim.
Por
exemplo, a doutrina aristotélica de que “o fim geral da arte é o bem do homem”
foi firmemente aprovada pelos enciclopedistas cristãos medievais; e podemos
dizer que todos os sistemas de pensamento filosóficos ou religiosos dos quais o
ideólogo de classe gostaria de se emancipar concordam que tanto a ética quanto
a arte são meios para a felicidade, e não fins. O ponto de vista burguês, que
na verdade é o ponto de vista do reformador social, é sentimental e idealista,
enquanto a doutrina religiosa que ele repudia é utilitarista e prática! De
qualquer modo, o fato de que um homem sinta prazer, ou possa sentir prazer, em
agir bem ou em produzir bem, não é suficiente para fazer deste prazer o
propósito de seu trabalho, exceto no caso do moralista ou daquele que meramente
expressa a si mesmo; assim como o prazer de comer não pode ser considerado a
finalidade de comer, exceto no caso do glutão, que vive para comer.
Se o uso
e o valor não são de fato sinônimos, é só porque o uso supõe a eficácia, e o
valor pode ser atribuído a algo ineficiente. Santo Agostinho, por exemplo,
demonstra que a beleza não é simplesmente aquilo de que gostamos, porque
algumas pessoas gostam de deformidades; ou, em outras palavras, valorizam
aquilo que na verdade é inválido. O uso e o valor não são idênticos na lógica,
mas no caso de uma pessoa perfeitamente saudável, coincidem na experiência; e
isto é admiravelmente ilustrado pela equivalência etimológica do alemão
“brauchen”, “usar”, e do latim “frui”, “fruir”.
Nem o
dinheiro, a fama ou a “arte” podem ser considerados explicações para a arte. O
dinheiro não pode, pois à exceção do caso da produção voltada para o lucro em
vez do uso, o artista por natureza, que tem em vista o bem da obra a ser
realizada, não está trabalhando para ganhar dinheiro, mas ganhando dinheiro
para poder continuar sendo ele mesmo, isto é, para poder continuar trabalhando
como aquilo que é por natureza; assim como ele come para continuar vivendo, em
vez de viver para continuar comendo.
Quanto à
fama, basta lembrarmos que a maior parte da melhor arte do mundo foi produzida
anonimamente, e que se algum trabalhador tem apenas a fama em vista, “todo
homem decente deveria se envergonhar de as pessoas boas saberem isto dele”. E
quanto à arte, dizer que o artista trabalha para a arte é um abuso de
linguagem. Arte é como um homem trabalha, supondo que ele conheça sua arte e a
tenha como hábito; do mesmo modo, a prudência ou a consciência é o que faz um
homem agir bem. A arte é tanto a finalidade de seu trabalho quanto a prudência
é a finalidade da conduta.
É só
porque, nas condições estabelecidas em um sistema de produção voltado pa-ra o
lucro em vez do uso, esquecemos o sentido da palavra “vocação” e pensamos
somente em termos de “empregos”, que confusões assim são possíveis. O homem que
tem um “emprego” está trabalhando por motivos alheios a si, e pode muito bem
ser indiferente à qualidade do produto, pelo qual não é o responsável; tudo o
que ele quer neste caso é garantir para si uma parcela adequada dos lucros esperados.
Mas alguém cuja vocação seja específica, isto é, alguém constitucionalmente
adaptado e treinado para um ou outro tipo de atividade, ainda que tire seu
sustento desta atividade, está na verdade fazendo aquilo de que mais gosta; e
se ele é levado pelas circunstâncias a fazer outro tipo de trabalho, ainda que
melhor pago, torna-se na verdade infeliz. A vocação, seja a do fazendeiro ou do
arquiteto, é uma função; o exercício desta função, no que diz respeito ao
próprio homem, é o meio mais indispensável de desenvolvimento espiritual, e no
que diz respeito à sua relação com a sociedade, a medida de seu valor. É
precisamente neste sentido que, como diz Platão, “mais será feito, e melhor, e
com mais facilidade, quando cada um fizer apenas uma coisa, de acordo com seu
gênio”; e isto é “a justiça para cada homem em si mesmo”. A tragédia de uma
sociedade industrialmente organizada para o lucro é que esta justiça lhe seja
negada; e qualquer sociedade assim literalmente e inevitavelmente faz o papel
de Diabo perante o resto do mundo.
O erro
básico do que chamamos a ilusão cultural é a presunção de que a arte é al-go a
ser realizado por um tipo especial de homem – particularmente, aquele tipo de
homem a quem chamamos gênio. Em direta oposição a isto está a perspectiva
normal e humana de que a arte é simplesmente a maneira correta de fazer as
coisas, sejam sinfonias ou aviões [2]. A perspectiva normal pressupõe, em
outras palavras, não que o artista seja um tipo especial de homem, mas que todo
homem que não é um mero ocioso e parasita é necessariamente algum tipo especial
de artista, hábil e contente em fazer alguma coisa de acordo com sua
constituição e treinamento.
Obras
geniais são de pouco uso para a humanidade, que invariavelmente e
inevitavelmente não entende, distorce e caricatura seus maneirismos e ignora
sua essência. Não é o gênio, mas o homem que pode produzir uma obra-prima, que
interessa. Pois o que é uma obra-prima? Não, como se supõe habitualmente, um
vôo individual da imaginação, além do alcance comum do seu próprio tempo e mais
voltado à posteridade do que a nós mesmos; mas, por definição, uma obra
realizada por um aprendiz ao final de seu aprendizado e pela qual ele prova seu
direito de ser admitido como membro de uma guilda, ou como diríamos hoje, um
sindicato, ou como artesão-mestre. A obra-prima é simplesmente a prova de
competência esperada e exigida de todo artista que se gradua, a quem não se
permite que monte uma loja própria a menos que tenha produzido tal prova. Do
homem cuja obra-prima foi portanto aceita por um corpo de praticantes
especializados se espera que continue produzindo obras de qualidade similar
pelo resto de sua vida; ele é um homem responsável por tudo o que faz. Tudo faz
parte do curso normal dos acontecimentos, e longe de pensar nas obras-primas
como meras obras antigas preservadas nos museus, o trabalhador adulto deveria
ficar envergonhado se alguma coisa que ele fizer esteja abaixo do padrão da
obra-prima ou não seja bom o suficiente para ser exibido em um museu.
O gênio
vive num mundo próprio. O artesão-mestre vive em um mundo habitado por outros
homens; ele tem vizinhos. Uma nação não é “musical” pelas grandes orquestras de
suas capitais, sustentadas por um seleto círculo de “amantes da música”, ou
porque estas orquestras tocam peças populares. A Inglaterra era “um ninho de
pássaros cantores” quando Pepys podia insistir que uma jovem donzela assumisse
um papel difícil no coro da família, pois do contrário correria o risco de não
conseguir um marido. E se as canções folclóricas de um país agora estão entre
as capas dos livros, ou, como diz o cantor mesmo, “postas num saco”, ou se
igualmente consideramos a arte algo a ser visto em um museu, não é que algo
tenha sido ganho , mas sim que sabemos que algo foi perdido , e desejamos ao
menos preservar sua memória.
Existem,
então, possibilidades de “cultura” além daquelas concebidas por nossas
universidades e grandes filantropos, e outras possibilidades de realização além
daquelas que podem ser exibidas em salas de estar. Não negamos que o ideólogo
de classe possa estar justamente ressentido com a exploração econômica; quanto
a isto, será suficiente dizer, de uma vez por todas, que “o trabalhador vale
por seu trabalho”. Mas o que o ideólogo de classe, como homem, e não apenas em
seu óbvio papel de explorado, deveria exigir mas quase nunca ousa é uma
responsabilidade humana por qualquer coisa que ele mesmo faça. O que o
sindicato deveria exigir de seus membros são obras-primas. O que o ideólogo de
classe que não é apenas um subalterno, mas também um homem, tem o direito de
exigir não é nem ter menos trabalho nem ter uma porção maior das migalhas
cultu-rais que caem da mesa dos ricos, mas a oportunidade de sentir imenso
prazer em fazer o que quer que faça como trabalho, da mesma maneira que sente
ao cuidar do próprio jardim ou em sua vida familiar; o que ele deveria exigir,
em outras palavras, é a oportunidade de ser um artista. Qualquer civilização
que lhe negue isto é inaceitável.
Com ou
sem máquinas, é certo que sempre haverá trabalho para fazer. Tentamos mostrar
que enquanto o trabalho é uma necessidade, não é de modo algum um mal
necessário, mas sim um bem necessário, no caso de o trabalhador ser um artista
responsável. Até agora falamos desde o ponto de vista do trabalhador, e talvez
nem seja preciso dizer que tudo depende tanto do patrono como do artista. O
trabalhador se torna um patrono na hora em que compra algo para seu próprio
uso. E para ele, enquanto consumidor, sugerimos que aquele homem que, quando
precisa de um terno, não compra dois ternos prontos de material vagabundo, mas
delega a tarefa de fazer um terno de material primoroso a um alfaiate, é muito
melhor como patrono das artes e filantropo do que o homem que mera-mente
adquire uma obra-prima e a coloca no museu nacional. Também o metafísico e o
filósofo têm um papel; uma das funções primárias do Professor de Estética
deveria ser destruir as superstições da “Arte” e do “Artista” como pessoa
privilegiada, um tipo diferente dos homens comuns.
O que o
explorado deveria ressentir não é meramente a insegurança social, mas a posição
de irresponsabilidade humana que lhe é imposta pela produção voltada para o
lucro. É preciso que ele entenda que a questão da propriedade dos meios de
produção tem um sentido primariamente espiritual, e só secundariamente um
sentido de justiça ou injustiça econômica. O ideólogo de classe, na medida em
que propõe que se viva só de pão, ou mesmo de brioche, não é melhor nem mais
sábio do que o capitalista burguês que ele afeta desprezar; nem ficaria ele
mais feliz no trabalho se trocasse muitos chefes por poucos. Faz pouca
diferença que ele pretenda viver sem arte, ou obter sua porção dela, se
consente na deificação desumana da “Arte” pressuposta na expressão “Arte pela arte”.
Não é mais propício ao fim último e presente do homem sacrificar-se no altar da
“Arte” do que sacrificar-se nos altares da Ciência, do Estado, ou da Nação
personificadas.
Em nome
de todos os homens negamos que a arte seja um fim em si mesma. Pelo contrário,
“a indústria sem arte é uma brutalidade”; e tornar-se um bruto é morrer para o
estatuto humano. Trata-se de um problema de bucha de canhão de qualquer jeito:
faz pouca diferença morrer repentinamente nas trincheiras ou dia após dia nas
fábricas.
(Tradução
de Alberto V. Queiroz)
Notas:
[1] Coomaraswamy interpreta o provérbio de forma parcial. É claro que a
virtude é um meio para um fim, e uma virtude que desprezasse os fins seria
inútil e nem virtude seria. Por outro lado, o provérbio tem um sentido positivo
na medida em que a virtude, mesmo quando não atinge um fim externo ao homem, é
útil: pois ela é a manifestação na alma de uma qualidade celeste e, portanto,
de uma presença divina, por mais relativa e longínqua. Ora, receber na alma uma
presença divina é sempre uma recompensa. Isso, no entanto, quando a virtude é
sincera: quando é praticada em Nome de Deus, não por orgulho. (Nota do Editor.)
[2] O autor erra ao considerar objetos modernos – carros, aviões – como
passíveis de ser feitos com arte. A doutrina ensinada por Guénon vai claramente
contra essa idéia. No entanto, esse pequeno erro do autor não prejudica seu
brilhante ensaio. (Nota do Editor.)
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