quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

Contos e Iniciação

Por Mircea Eliade*


               
                  A coexistência, a contemporaneidade dos mitos e dos contos nas sociedades tradicionais, suscita um problema delicado mas não insolúvel. Pode-se pensar nas sociedades do Ocidente medieval, em que os místicos autênticos se encontravam submersos na massa dos simples crentes e mesmo misturados a alguns cristãos cuja falta de devoção chegara a um ponto tal, que não mais participavam do cristianismo, senão exteriormente. Uma religião é sempre vivida – ou aceita e suportada – em diversas gradações; mas, entre esses diferentes planos de experiência, há equivalência e homologação. A equivalência se mantém mesmo após a “banalização” da experiência religiosa, após a (aparente) dessacralização do mundo. (Para nos convencermos, basta analisar as valorizações profanas e científicas da “Natureza”, depois de Rousseau e da filosofia do iluminismo). Hoje, entretanto, reencontramos o comportamento religioso e as estruturas do sagrado – figuras divinas, gestos exemplares, etc. – nos níveis profundos da psique, no “inconsciente”, nos planos do onírico e do imaginário. 

                Isso suscita um outro problema, não mais de interesse do folclorista ou do etnólogo, mas que preocupa o historiador das religiões e que acabará por interessar o filósofo bem como, possivelmente, o crítico literário, pois também diz respeito, se bem que indiretamente, ao “nascimento da literatura”. Embora, no Ocidente, o conto maravilhoso se tenha convertido há muito tempo em literatura de diversão (para as crianças e os camponeses) ou de evasão (para os habitantes das cidades), ele ainda apresenta a estrutura de uma aventura infinitamente séria e responsável, pois se reduz, em suma, a um enredo iniciatório: nele reencontramos sempre as provas iniciatórias (lutas contra o monstro, obstáculos aparentemente insuperáveis, enigmas a serem solucionados, tarefas impossíveis, etc.), a descida ao Inferno ou a ascensão ao Céu (ou – o que vem a dar no mesmo – a morte e a ressurreição) e o casamento com a Princesa. É verdade, como justamente salientou Jan de Vries, que o conto sempre se conclui com um final feliz. Mas seu conteúdo propriamente dito refere-se a uma realidade terrivelmente séria: a iniciação, ou seja, a passagem, através de uma morte e ressurreição simbólicas, da ignorância e da imaturidade para a idade espiritual do adulto. A dificuldade está em determinar quando foi que o conto iniciou sua carreira de simples história maravilhosa, decantado de toda responsabilidade iniciatória. Não se exclui, ao menos para certas culturas, que isso se tenha produzido no momento em que a ideologia e os ritos tradicionais de iniciação estavam em vias de cair em desuso e em que se podia “contar” impunemente aquilo que outrora exigia o maior segredo. Não é de todo certo, entretanto, que esse processo tenha sido geral. Em grande número de culturas primitivas, nas quais os ritos de iniciação permanecem vivos, as histórias de estrutura iniciatória são igualmente contadas, e o vem sendo há longo tempo. 

                Poder-se-ia quase dizer que o conto repete, em outro plano e através de outros meios, o enredo iniciatório exemplar. O conto reata e prolonga a “iniciação” ao nível do imaginário. Se ele representa um divertimento ou uma evasão, é apenas para a consciência banalizada e, particularmente, para a consciência do homem moderno; na psique profunda, os enredos iniciatórios conservam sua seriedade e continuam a transmitir sua mensagem, a produzir mutações. Sem se dar conta e acreditando estar se divertindo ou se evadindo, o homem das sociedades modernas ainda se beneficia dessa iniciação imaginária proporcionada pelos contos. Caberia então indagar se o conto maravilhoso não se converteu muito cedo em um “duplo fácil” do mito e do rito iniciatórios, se ele não teve o papel de reatualizar as “provas iniciatórias” ao nível do imaginário e do onírico. Esse ponto de vista surpreenderá somente aqueles que consideram a iniciação um comportamento exclusivo do homem das sociedades tradicionais. Começamos hoje a compreender que o que se denomina “iniciação” coexiste com a condição humana, que toda existência é composta de uma série ininterrupta de “provas”, “mortes” e “ressurreições”, sejam quais forem os termos de que se serve a linguagem moderna para traduzir essas experiências (originalmente religiosas).



*Trecho retirado do livro Mito e Realidade, Apêndice I, “Os Mitos e os Contos de Fadas”.

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